Lugar da Fala
FILIPE FARIA Autoria
Ensaio Lugar da Fala Filipe Faria
Todas as vozes
A sociedade contemporânea reserva pouco espaço – formal, conceptual e emocional – para o lugar da fala na velhice. Este é um lugar de não importância, de irrelevância social, tantas vezes marginalizado, feito de vozes silenciadas.
A experiência e a memória têm pouco lugar nos nossos lugares, permanentemente ocupados pela espuma dos dias, viciados, como estamos, pelo presente e pelo futuro. São ecos mudos de um passado ao virar da esquina. Mesmo à mão.
Perdemos quando não nos desenhamos a partir das nossas próprias histórias. Quando não conseguimos adivinhar os nossos caminhos porque não paramos para olhar, para ver, para ouvir, para conversar. Quando não definimos como absoluta necessidade irmos de mão dada.
Falhamos quando não promovemos a nossa relação com o meio, com os nossos meios, ou quando não nos alimentamos da partilha, do pensamento e da introspecção, da diversidade, da escolha, da recusa, da decisão ou do diálogo entre gerações.
O tempo a passar, relativo, diferente para cada um em cada momento, em cada idade, a cada hora, é incontornável. Esse tempo — esse lugar — é um caminho de novos e velhos, ao mesmo tempo. Uns carregam mais bagagem que outros. Estivéssemos, todos, prontos a recebê-la mais à frente. Juntos, fazemos o que quisermos da nossa história e memória colectivas, saibamos ir de mãos dadas.
Podemos ouvir todas as vozes?
Filipe Faria
Os dias compridos e o tempo curto
Há no tempo, nesse lugar perdido e achado, uma reconciliação irreconciliável, uma distopia de tal forma senciente que dói. Que fere. E despedaça.
Convencionou-se chamar a esse mil-folhas de metáforas o viver, que está para a vida como o envelhecimento está para a velhice. O envelhecimento é a realidade mais velha do mundo. A velhice é uma complexa construção social, um daqueles alçapões antropológicos da industrialização, o Antropoceno a despertar enquanto a Humanidade adormecia em acalantos plutocratas, como se fosse um átomo, um ciclo, um Éon, uma verdade que se transformou em dado clínico, para se fazer ciência antes de ser religião. Isso: uma mentira repetida à infinitude que no imaginário cultural se converteu em ortodoxia.
É isso que a velhice é. Como se fosse um estado, quando não é. Como se fosse matéria gasta, quando não é. Como se fosse especialização funcional, quando não é. Na era da ignorância, ignorar parece já uma arte. Não ver. Não ouvir. Esconjurar o sentimento em sedimentos de tecnologia. Não exercer o pensamento é a forma mais ancestral de inteligência artificial. Há muito que o sonho já não comanda a vida. Criámos para nós uma estirpe de pobreza que perde sempre, uma perpétua homogeneização da diversidade, uma espécie de igualdade desigual, onde alguém é toda a gente e toda a gente ninguém. Onde a verdade nunca é o que se pensa.
Começámos a envelhecer à nascença e a ser velhos quando nos convenceram que a idade tem plagas fronteiriças, que há funções socialmente delimitadas, que a velhice é um compartimento assistencialista onde se guardam as falências. Um lugar desolado, para seres perdidos de um tempo perdido numa imortalidade perdida, tribos ascetas, náufragos da desumanização, sem futuro, sem presente, como condenados pós-modernos ao vão do olhar. As assoalhadas desumanizaram, desumanizaram os bairros, as cidades, os pequenos e grandes mundos onde habitam as pessoas, perdeu-se o universo que habita em cada uma delas, para se fazer deste um território irreal, gentrificado de nenhures. Ilhas humanas, num colectivo de vazio, aduladores "tech", como dispositivos periféricos na eucarístia da solidão.
Que conceito magnífico, o da ecologia humana, que vai ao encontro do diálogo, da inclusão, para se reencontrar. É uma beleza autóctone, que nasce da sua absoluta necessidade, dessa estranha irrealidade que nos habita na ausência em estado absorto de quimera, como um desejo irrealizável de tão simples. Tão simples: ouvir o outro. Unir a linha existencial na sua intemporalidade, enquanto é tempo. Redimir a Humanidade do feudalismo sintético do seu avatar e resgatar a natureza humana para a pureza cognitiva da dimensão social. Linguagem. Oralidade. Raciocínio. Sentimento. Memória. Lembram-se? Sem memória, não há futuro.
Não é ainda um facto histórico, mas podemos ter a certeza de que é um facto: o envelhecimento populacional é a transformação social mais significativa do século XXI.
Ironia das ironias. Neste mundo, somos cada vez mais velhos do que novos. Em breve, seremos todos a memória de um lugar chamado tempo. Oiçamo-nos. No Lugar da Fala.
Luís Pedro Cabral
O Lugar da Fala é um projecto
Casa das Artes do Vale de Alcântara
Conceito original, livro, filme
Filipe Faria
Casa das Artes do Vale de Alcântara
ohomem.org/cava
Um projecto
O Homem - Associação Colectivo para a Ecologia Humana
Projecto Alkantara - Associação de Luta Contra a Exclusão Social
Financiamento
Câmara Municipal de Lisboa
Programa BIP/ZIP
Apoios
Junta de Freguesia de Alcântara
Junta de Freguesia de Campo de Ourique
APORDOC Associação pelo Documentário
\Doclisboa International Film Festival \ABCdoc
O Comércio de Alcântara
Associação de Jovens Juntos pela Mudança
Pró-Comissão de Moradores da Quinta da Cabrinha
Pró-Comissão de Moradores da Quinta do Loureiro
Agradecimentos
Afonso Pinto, Ariana Santos, Arménia Silva 'Mena', Aurora Martins, Beatriz Fernandes 'Tita', Carolina Santos, Delmira Esteves 'Nina', Fábio Moura, Fátima Flores, Generosa Dias, Gonçalo Santos, Leonardo Verdú, Lurdes Pereira, Maria Isabel Loureiro 'Belíssima', Martim Barata, Matilde Duarte, Rodrigo Verdú, Rosalina Tavares, Tiago Singh
Entrevistas
Filipe Santos
Filipe Faria
Mediação crianças e jovens
Solange F.
Transcrição
Igor Ramos
Maria Monteiro
Produção
Rita Santos
Luís Sequeira
Edição O Homem
Design gráfico, edição filme Arte das Musas
1ª Edição Lisboa 2024
Impressão Maiadouro
Tiragem 500
Todos os direitos reservados
Casa das Artes
do Vale de Alcântara
Um projecto original das Entidades Promotoras:
O Homem – Associação – Colectivo para a Ecologia Humana
Projecto Alkantara – Associação de Luta contra a Exclusão Social
Financiamento:
Câmara Municipal de Lisboa
Programa BIP/ZIP – Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa
Parceiros
Junta de Freguesia de Alcântara
Junta de Freguesia de Campo de Ourique
Apordoc – Associação pelo Documentário \Doclisboa
Jornal Comércio de Alcântara
Juntos pela Mudança \Associação
Pró-Comissão de Moradores da Quinta da Cabrinha
Pró-Comissão de Moradores da Quinta do Loureiro